segunda-feira, 25 de maio de 2009

Diário de Bordo - O cansaço da transgressão


Por Heron Nogueira

Prezado leitor,

Uma das grandes certezas que carrego ao longo desses anos trabalhando com medida socioeducativa, é que o grande combustível que alimenta, cada vez mais, a vontade de continuar trabalhando é quando vemos, escancarado à nossa frente, um jovem carregando um real desejo de mudança de vida. Gostaria de compartilhar com você um desses momentos mágicos que nos deixam com a certeza de que fazer um trabalho social, cujo resultado em termos reais, é muito mais valioso para quem oferece ao outro novas possibilidades.
Ontem pela manhã fui procurado por um adolescente de 17 anos que me solicitava viabilizar um trabalho, como aprendiz, no interior da unidade. Apenas para situar: aos adolescentes que estão mais adiantados no processo socioeducativo são disponibilizadas, após avaliação técnica, bolsas sociais para vagas nas funções de jardinagem, manutenção predial, serviços gerais, auxiliar de escritório, entre outras. São oferecidas também oficinas profissionalizantes às quais os jovens freqüentam com o objetivo de buscar uma profissão. Todas as informações abaixo descritas foram fornecidas pelo próprio adolescente durante o atendimento.
A esposa de Fábio (nome fictício) está grávida de 8 meses. Eles se conheceram em uma festa há cerca de 3 anos. Quatro meses depois já estavam morando juntos em um barraco de madeira, na periferia do Distrito Federal. O aluguel e todas as despesas da casa eram pagos com o dinheiro do tráfico de drogas e roubos praticados pelo adolescente. Num desses roubos o jovem conseguiu reunir o montante de R$ 30 mil. Referente ao dinheiro, relata: “hoje não sobrou nada. Hoje só tenho duas pistolas que já mandei vender para render um dinheiro pra minha mulher. Ela só não ta passando fome porque meu pai está ajudando”. Segue um trecho desse diálogo:
F – Hoje eu quero mudar de vida. Não quero dar esse exemplo pra minha filha quando ela nascer. Essa vida é cruel.
H – O que o faz acreditar que essa vida é cruel?
F – Eu não sei o que é paz. Queria que alguém me ensinasse a saber um dia o que é ter paz.
H – Você vai esperar alguém te ensinar isso? Não está disposto a tentar?
F – Hoje eu estou. Mas não sei se consigo. Uma coisa eu tenho certeza, estou muito cansado de tudo isso. (Com os olhos marejados de lágrimas) Essa vida do crime não vale nada. Pra mim, chega!
H – Você precisa dessa disposição. Não adiantaria nada eu te entregar a oportunidade do trabalho se você não souber para quê e nem como usar. No outro dia você se cansaria e, lá fora, iria atrás do crime novamente.
F – Eu sei que o dinheiro e as drogas são tentações. Desde o quatorze anos eu vou preso, por causa disso, mas hoje eu vou ter uma filha e não quero continuar vivendo correndo o risco de tirarem minha vida (...).
Tem certas intervenções com esses jovens que você sai com a nítida sensação de que poucas palavras vão ser por eles consideradas. Não nesse momento! Não somente pelas palavras que ele proferia, mas todo o seu corpo conduzia, ou deixava ser conduzido, pelas suas emoções. Era um conjunto harmônico de variáveis que se uniam e, juntas, sopravam vertigem de arrependimento, mágoa, insegurança, angústia... e, ao mesmo tempo, talvez com uma intensidade maior, um desejo latente de mudar o caminho para trilhar sua nova vida. Como eu tive essa percepção? Não sei ao certo. Dizem que nós terapeutas temos uma antena incomum ligada constantemente para as questões do humano. Mas também pode ser que a experiência tenha me ensinado que para formar um indivíduo, precisamos antes informá-lo. Mas para informá-lo precisamos, sobretudo, sensibilizá-lo.


Até a próxima.

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